desde 2025: Volúpia | Onde já não se está
in process #1
1 a 7 de Setembro de 2025 - residência de criação em Sekoia Artes Performativas (Porto);
PT
Volúpia | Onde já não se está é um projeto processual e experimental. Parte de uma prática viva que assume diferentes formas ao longo do seu acontecer: desenhos, vídeos, esculturas efêmeras ou ações. A performatividade aqui manifesta-se como um gesto elementar, mínimo — um rasto.
O ponto de partida deu-se com o encontro de um pequeno objeto de barro, de forma retangular, recolhido durante uma caminhada em direção à montanha, na cidade de Sófia, na Bulgária. Acredito que esse objeto seja um fragmento de chão que, de forma estranha, surge num contexto altamente descontextualizado. Esse fragmento, silencioso e acidental, passou a operar como matriz — simbólica e material — para uma série de desenhos e derivações.
A ação de demarcar torna-se, assim, o centro da proposta: recordar o percurso e traduzi-lo. Mas esta tradução é livre, intuitiva e poética — não procura a coerência cartográfica, mas propõe antes uma geografia da deriva, uma cartografia do extravio. O projeto, na sua essência, não se ancora na lógica do espetáculo. Em vez disso, abriga-se na cerimónia, alimenta-se do repouso, do jogo, do cuidado, do afeto e da escuta.
Todos os materiais utilizados são recolhidos ao longo do processo — cartões, tintas secas, papéis esquecidos, restos. São fragmentos que, tal como o gesto que os convoca, recusam a ideia de origem ou de destino, preferindo habitar os vários intervalos.
ENG
Volúpia | Onde já não se está is a processual and experimental project. It stems from a living practice that takes on different forms throughout its unfolding: drawings, videos, ephemeral sculptures, or actions. Performative presence here manifests as an elemental, minimal gesture — a trace.
The starting point was the encounter with a small rectangular clay object, found during a walk towards the mountain in the city of Sofia, Bulgaria. I believe this object to be a fragment of ground that, in a strange way, appears in a highly decontextualized setting. This silent and accidental fragment began to operate as a matrix — both symbolic and material — for a series of drawings and derivations.
The act of marking becomes the core of the proposal: to remember the path and translate it. But this translation is free, intuitive, and poetic — it does not seek cartographic coherence but instead suggests a geography of drift, a cartography of loss. At its core, the project does not anchor itself in the logic of spectacle. Instead, it shelters in ceremony, nourishes itself through rest, play, care, affection, and attentive listening.
All materials used are collected along the way — cardboard, dried paint, forgotten papers, remnants. These are fragments that, like the gesture that gathers them, reject the notion of origin or destination, choosing instead to inhabit the in-between.
Um projecto de Flávio Rodrigues
Apoio: Ministério da Cultura/Dgartes
in process #2
23 a 28 de Setembro de 2025 - residência de criação em SHE - Sociedade Harmonia Evorense / FIDANC / CDCE;
in process #3
19 de Novembro de 2025 - residência de criação em Centro Coreográfico Instável (Porto);
PT
"Volúpia | Onde já não se está" nasceu de um gesto diminuto, quase irrelevante na aparência, mas que continha uma força inaugural. Tudo começou com um fragmento de barro encontrado numa caminhada na Bulgária, pequena porção de chão arrancada ao seu próprio silêncio e, fora do seu contexto, retirado de uma montanha. Este fragmento, matéria quase anónima, tornou-se matriz de um percurso que se foi desdobrando em deriva poética sobre cartão. A partir dele fui traçando linhas, curvas incertas, geografias íntimas e subjectivas.
Durante a residência na Sekoia Artes Performativas, o projecto começou a revelar um sentido inesperado. Ao trabalhar com os desenhos, percebi que a tinta lhes conferia uma ligeira torção durante a secagem, obrigando-me a colocá-los invertidos contra o chão para os endireitar. Este gesto simples e técnico, quase mecânico, começou a iluminar outra camada do trabalho. Os desenhos, voltados para baixo, silenciosos, parcialmente escondidos, ressoavam de forma mais profunda. A sua matéria ganhava uma discrição luminosa e a sobreposição entre eles criava pequenas geografias secretas. Percebi que há derivas que se traçam sem serem vistas, caminhos que pertencem apenas ao instante solitário de quem os percorre. Essa dimensão oculta, quase subterrânea, começou a organizar o mapa conceptual do projecto
Quando cheguei à Sociedade Harmonia Eborense, mantive essa mesma lógica. A exposição acolheu os desenhos nessa condição de reserva e semiexistência, permitindo que alguns permanecessem dissimulados ou apenas insinuados, como se o espaço reconhecesse o valor do que não se mostra por completo. A SHE tornou-se lugar de continuidade dessa linguagem discreta, onde a presença existe em tensão com a ausência e onde os traços respiram dentro do seu próprio segredo.
A terceira fase desenvolveu-se durante a residência na Companhia Instável, no Porto, e marcou um novo desdobramento. Encontrei dois azulejos durante uma caminhada e ambos impuseram uma medida, um módulo, uma contenção. Comecei a recortar os desenhos antigos seguindo essa forma. Ao fazê-lo, deixei de fora todas as marcas do fragmento inicial de barro, como se a matriz pudesse finalmente dissolver-se e abandonar a necessidade de ser reconhecida. Os cartões resultantes, pintados em múltiplos tons de laranja, adquiriram uma vitalidade própria, libertos de qualquer rasto que os explicasse. Já não eram mapas, nem prolongamentos da matriz, mas pequenas unidades de respiração material.
Este novo conjunto culminou numa ação performativa que consistiu na composição de uma breve deriva com os próprios cartões. Uma linha curva, ou quase curva, nascida do corte, instaurou-se como gesto final deste percurso. No entanto, enquanto projecto processual, não se encerra aqui. A própria destruição dos desenhos abriu um caminho inesperado, como se o acto de desintegrar aquilo que fora construído revelasse outra forma de continuação. O percurso encontrou-se nesse desvio, nesse desaparecer para tornar a traçar, como se cada ruína oferecesse uma nova superfície para o desenho seguir em respiração.
ENG
"Volúpia | Onde já não se está" was born from a minute gesture, almost irrelevant in its appearance yet containing a certain inaugural force. It all began with a fragment of clay found during a walk in Bulgaria, a small portion of ground torn from its own silence and, out of context, taken from a mountainside. This fragment, an almost anonymous matter, became the matrix for a path that gradually unfolded into a poetic drift on cardboard. From it I traced lines, uncertain curves, intimate and subjective geographies.
During the residency at Sekoia Artes Performativas, the project began to reveal an unexpected meaning. While working with the drawings, I noticed that the ink gave them a slight twist as they dried, forcing me to place them upside down against the floor in order to straighten them. This simple, technical, almost mechanical gesture began to illuminate another layer of the work. The drawings, turned face down, silent, partially hidden, seemed to resonate more deeply. Their material acquired a luminous discretion, and the overlapping between them created small secret geographies. I realised that some drifts are traced without being seen, paths that belong only to the solitary instant of the one who walks them. That hidden, almost subterranean dimension gradually began to organise the conceptual map of the project.
When I arrived at Sociedade Harmonia Eborense, I maintained the same logic. The exhibition welcomed the drawings in this condition of reserve and semi-existence, allowing some to remain concealed or merely suggested, as if the space recognised the value of what is not shown entirely. SHE became a place of continuity for this discreet language, where presence exists in tension with absence and where the lines breathe within their own secrecy.
The third phase unfolded during the residency at Companhia Instável, in Porto, marking a new expansion of the project. I found two tiles during a walk, and both imposed a measure, a module, a form of constraint. I began cutting the older drawings according to that shape. In doing so, I left out all the marks of the initial clay fragment, as though the matrix could finally dissolve and abandon the need to be recognised. The resulting cards, painted in multiple shades of orange, acquired a vitality of their own, freed from any trace that might explain them. They were no longer maps, nor extensions of the matrix, but small units of material breath.
This new set culminated in a performative action consisting of composing a brief drift with the cards themselves. A curved line, or almost curved, born from the cut, established itself as the final gesture of this trajectory. Yet, as a processual project, it does not end here. The destruction of the drawings opened an unexpected path, as if the act of disintegrating what had been constructed revealed another form of continuation. The journey found itself in this detour, in this disappearing in order to draw again, as though each ruin offered a new surface for the drawing to continue breathing.

in process #4
27 a 29 de Novembro de 2025 - Biblioteca Pública de Salamanca, inserido em De Un Lado A Otro | MIRADAS CONTEMPORÁNEAS XV