"Algures | numa mutação feérica" é o título de um projeto de criação interdisciplinar que intersecta o gesto coreográfico com a ação de compor e construir um objeto instalativo dentro do território do desenho. Este projeto, em suma, é concebido em três fases distintas que se complementam: na primeira fase, ocorre o encontro com a matéria objetual; na fase seguinte, já em estúdio, é realizado o tratamento da mesma – e, por tratamento, refiro-me ao cuidado, conhecimento, experimentação e adaptação; por fim, o terceiro momento consiste no encontro performativo/visual entre o corpo e a matéria conseguida.
Tenho me interessado essencialmente pela utilização de materiais não extrativistas ou pela reutilização de materiais que, por diversos motivos, deixaram de ter função, predominantemente provenientes de processos de caminhadas ou, mais recentemente, de visitas a fábricas desativadas, por exemplo. Para este projeto, o material a ser utilizado será o papelão (ou cartão), comumente encontrado ao final do dia, descartado às portas das lojas ou mercados. Esse material é feito a partir de polpa de madeira e pode conter uma percentagem de papel reciclado, sendo usado, por norma, para embalar e transportar mercadorias.
Depois de reunir os papelões, em estúdio, passarei por uma fase de experimentação da própria matéria, na qual objetivo a concretização de uma série de pequenos pedaços, nos quais serão destacadas as especificidades que, naturalmente, variam entre si não apenas no tom, mas também na textura, volume e peso, tal como na forma conseguida. As formas serão geométricas (entre linhas retas, curvas e curvilíneas). Interessa-me construir esses pedaços de papelão, diferentes entre si, como se de um puzzle se tratasse. O desenho será desenvolvido de forma celular, através da junção dos diversos pedaços, resultando em uma única figura.
A performance consistirá no encontro através da pesquisa de movimento e gestos coreográficos provenientes de ações simples como construir, compor, desenhar – e, por consequência, decorar, pousar, mudar de sítio, transferir, juntar, separar, posicionar ou reposicionar os pedaços e o seu paulatino resultado. No final, teremos uma instalação cujo desenho – entretanto completo – é proveniente de uma reflexão e investigação sobre a ideia de "paisagem". Ora, como se cada pedaço pertencesse a um pedaço de paisagem.
A pergunta base "o que é uma paisagem?" é o fim promissor e condutor para uma série de outras questões que emergem como um processo ramificacional de possibilidades de resposta. A paisagem é um conceito profundamente intrincado e subjetivo; não é apenas um arranjo físico de elementos naturais e artificiais. Talvez se aproxime mais de uma interseção entre o mundo exterior e nossa experiência interna, uma vez que o ser humano está sempre inextricavelmente ligado a ela quando presente, porém, quando não presente, a paisagem não deixa de ser paisagem. Independentemente do nosso possível fim, tal como antes e depois da humanidade, haverá sempre paisagens.
Nessa perspectiva, o observador não é meramente um espectador distante, mas sim uma entidade imersa na própria tessitura da paisagem que contempla. A paisagem não é apenas um cenário físico; é também um espaço onde se entrelaçam histórias, desejos, sonhos, culturas e/ou espiritualidade. Em "Democracia da Terra: Justiça, Sustentabilidade e Paz", a filósofa Vandana Shiva escreve: "A Terra não pertence ao homem; é o homem que pertence à Terra. Em sua essência mais profunda, somos tecidos na tapeçaria da natureza, entrelaçados com o solo que pisamos, os rios que fluem e o ar que respiramos."
Para este projeto, interessa-me explorar essas ideias num mergulho de narrativa poética e altamente subjetiva, sem promessas nem desejos de uma resposta definitiva. Em vez disso, são evocadas reflexões e conceitos sobre elementos como rio, terra, ar, mar, pedra, montanha, vale, céu, ossos, sangue, pele e pelo. O desenho constrói-se com o performer e a audiência, de dentro para dentro e sob dentro. Observa-se fazendo parte. Cada desenho (ou ação performativa), embora respeitando as mesmas regras e intenções semelhantes, é sempre único, adaptando-se à presença de quem assiste e às características específicas do espaço e tempo do momento.